sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

"Nada nasce de um epitáfio"



As Corridas de Toiros foram proibidas na região da Catalunha a partir deste ano de dois mil e doze. Esta crónica foi escrita no dia da última Corrida de Toiros em Barcelona, no passado vinte e cinco de Setembro. Uma crónica completamente distinta de todas as outras já escritas. Javiez Hernández, o autor, merece uma ovação. No dom da palavra, há até textos que de tão bem desenhados, nascem de um epitáfio... 

"Nunca nada nasceu sobre um epitáfio. O toureio sim. O toureio dá-se ao luxo de ser único até nestas coisas. O toureio pode nascer na inscrição vermelha de uma lápide sem morto, de uma laje imposta pelos que acreditam que acariciar um toiro de saída com um cenário rosa é próprio de brutos ou de espanhóis. Eles não sabem que é coisa de valentes sensíveis.
Os funerários que colocaram a lápide jamais pensaram que a partir das letras da sua sentença podia brotar a perfeição de mil carícias levadas por José Tomás. Eles, capazes de pôr granito onde há vida, desconhecem que o toureio se filtra pelos poros para chegar a calar quando é perfeito. Eles, carraças da liberdade, hipócritas do cuidado e da exterminação, nem sabem que não há verdade mais atractiva que descobrir a verdade proibida, e que verdade que guarda o toureio.
A verdade de um homem disposto a criar harmonia onde outros só sentem pânico. A verdade de um humano que ânsia a comunhão completa com a besta pondo a sua vida em jogo. A verdade de José Tomás cedo nasceu sobre a lápide, com o seu capote adormecido, capaz de parar o tempo com as carícias das suas verónicas. Era a maneira de elevar o toureio mais alto que o Rest in Peace da inscrição. De seguida, trouxe a sua mão esquerda para receber de forma recta o Pilar que doce era por ir atrás do deslize daquela dança. E cada vez mais apertado, cada vez mais junto ao homem, com o ritmo de 18.000 corações a bater ao compasso dos seus naturais. Os seus tempos, as suas pausas, ao seu gosto. Era a espera para os passos finais e definitivos de umas manoletinas perto do burladero que queriam fundir o toiro à sua cintura.
Era a comunhão perfeita e tão procurada. Nascia o toureio perfeito de um epitáfio sem morto, porque o toureio vive apesar de todos os pesares. Mas havia que matar o bom toiro. A assinatura pendente de um José Tomás ressuscitado na sua melhor versão dos seus melhores sonhos mas no seu pior lado e aquele mais frio. Ressuscitado sim, mas talvez com o sentido de não voltar a querer morrer. Sobre isso, mais nada; Ousou José Tomás o toureio perfeito, que nascesse em flor sobre o granito de um epitáfio maldito e traiçoeiro e no qual se tinha que escrever ‘morrer’ ou ‘matar’. Assim matou José Tomás, cerrando os dentes e voltando a celebrar o seu feito de herói dentro de um manicómio. Claro que ainda tem a frieza para voltar à loucura do momento dos momentos um dia passados. E foi o delírio. Todos pediam o rabo com loucura e só o director da corrida se foi pela decisão contrária.
Nasceu o toureio de um epitáfio! E ninguém conseguiu trazer mais luz. E ele, outra vez José Tomás, com o quinto que não era nada fácil e que investia sem profundidade e sem vontade. Tentou de todas as maneiras: com gaoneras de parar a respiração, uma soberba revolera; de longe e de perto com a muleta, vindo procura-lo mas também esperando-o, oferencendo passos mas também girando. Não vinha ao desbarato e foi então de passo a passo, e com a mão direita encontrou a tecla afinada da expressão de uma bonita nota  seguida de outra ainda melhor. Mas não houve espada.
Juan Mora e o seu verde esperança desenharam-se em verónicas que se espalharam de um modo tranquilo e também Mora e o seu verde estiveram a gosto perto da trincheira e com desdém do primeiro toiro cheio de nobreza e lidado com frieza pela sua mão e sendo imediatamente contestando por isso. Menos opção deu um quarto sem sentimento com o qual bregou para rachar, voltar a rachar, e sem mais poder aspirar.
Não mais brilhou a grande vítima, o catalão que mata toiros, Serafín Marín, abriu um capote de mil cores, pintado por uma neta de Alberti, reivindicativo da senhera (bandeira da catalunha) mas hesitante pelo seu maneijo. A muleta foi vermelha por tradição; rude e tosca num pulso perdido num mar de nervos. Pediu subtilezas o súbtil Pilar adormecido e Marín dava-lhe toques de um homem rude. Era o catalão proibido e de norte perdido.
Mas saiu o ultimo, o toiro final ansiado pelos assassinos das liberdades e dos caprichos ignorantes que sofrem de uma identidade enganada. Dudalegre, assim se chamava, outro Pilar de nariz rasteiro que pedia a muleta de tão bem que lhe ficava. Todos empurravam o Dudalegre e Serafín para um fim de festa com som triunfal. Entre todos que o ousaram, com um toureiro refeito e corajoso e 18.000 humanos aplaudindo ao único espanhol que amanhã não pode ir trabalhar para a sua terra (sim o toureio é um trabalho) por uma lei nacionalista e de má fé. Esse Serafín submerso, partido em mil pedaços com duas orelhas nas suas mãos e uma enorme ferida na alma.
Todos em plataformas pelas ruas, todos aclamando liberdade, todos feridos e unidos numa procissão diferente. Foi a tarde em que colocaram um epitáfio de um morto que não existe. Querem-nos matar o lindo toureio, mas ele voltou logo a renascer sobre uma lápide pesada e selada para marcar fronteiras. Querem-nos matar o toureio e vai ele e renasce, porque o morto, visto a maré humana que o sente, está bem vivo. Um dia, depois de perceber que a sua revolução viria abaixo, disse Espartaco romano, gladiador dos gladiadores, “Voltaremos, e seremos milhões”. E Roma caiu.
Ficha do Festejo
Praça de Barcelona, esgotada em tarde esplendida. Seis toiros de El Pilar, com trapio, nobreza abundante e força medida. Bons os lidados em primeiro, segundo, terceiro e sexto lugares.  Pouco lúcido o quarto e com alguma opção o quinto.
Juan Mora (verde esperanza e ouro): Ovação e Silêncio
José Tomás (preto e ouro): Duas Orelhas e Grande Ovação
Serfaín Marín (groselha e ouro): Ovação e Duas Orelhas"


Texto original aqui, em castelhano por Javier Hernandez, tradução de Pedro Pissarra   

O Capote da Liberdade empunhado por Marín


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